sexta-feira, 4 de abril de 2008

Como uma luva

O Andaime – Fernando Pessoa

O tempo que eu hei sonhado
Quantos anos foi de vida!
Ah, quanto do meu passado
Foi só a vida mentida
De um futuro imaginado.

Aqui à beira do rio
Sossego sem ter razão.
Este seu correr vazio
Figura, anônimo e frio,
A vida vivida em vão.

A esperança que pouco alcança!

Que desejo vale o ensejo?
E uma bola de criança
Sobe mais que a minha esperança.
Rola mais que o meu desejo.

Ondas do rio, tão leves
Que não sois onda sequer,
Horas, dias, anos, breves
Passam – verduras ou neves
Que o mesmo sol faz morrer.

Gastei tudo que não tinha. Sou mais velho do que sou.
A ilusão que me mantinha,
Só no palco era Rainha:
Despiu-se e o reino acabou.

Leve som das águas lentas,
Gulosas da margem ida,
Que lembranças sonolentas
De esperanças nevoentas!
Que sonhos o sonho e a vida!

Que fiz de mim?
Encontrei-me, quando estava já perdido,
Impaciente deixe-me
Como a um louco que teime
No que lhe foi desmentido.

Sem morto das águas mansas
Que correm por ter que ser,
Leva não só as lembranças,
Mas as mortas esperanças –
Mortas porque hão de morrer.

Sou já o morto futuro.
Só um sonho me liga a mim
O sonho atrasado e obscuro
Do que eu devera ser – muro
Do meu deserto jardim.

Ondas passadas, levai-me
Para o olvido do mar!
Ao que não serei legai-me,
Que cerquei com um andaime
A casa por fabricar.

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